domingo, 4 de abril de 2010


TELEANÁLISE


MALU FONTES


O OVO DA SERPENTE

O atentado terrorista mais devastador da história caminha para completar sua primeira década. Após o 11 de setembro de 2001, quando as emissoras de televisão de todo o mundo repetiram ininterruptamente as imagens surreais das torres gêmeas explodindo em chamas, fumaça e poeira no ar em Nova Iorque por aviões cheios de gente e combustível, arremessados por terroristas contra um dos símbolos mais caros do capitalismo, a geopolítica mundial nunca mais parou de experimentar estertores. A conseqüência política mais visível foi a invasão do Iraque. As conseqüências subliminares até hoje são esquadrinhadas e já são em quantidade suficiente para preencher desde as paranóias mais esdrúxulas ao medo mais concreto de todo o mundo, sobretudo entre os países mais poderosos do ocidente.

Depois do 11 de setembro, outros ataques de menores proporções, mas igualmente cruéis e violentos elegeram o metrô de Londres, o sistema ferroviário de Madri e hotéis no Egito e no Marrocos. Nesta semana as imagens mais importantes, em escala global, na TV mundial mostravam pessoas mortas, sangrando ou sendo socorridas em duas estações de metrô em Moscou, o segundo do mundo em movimentação diária de pessoas, ficando atrás apenas do metrô de Tóquio, no Japão.

VIÚVAS – É fato que as viúvas negras, como são chamadas as mulheres bombas russas ligadas a guerrilheiros separatistas das províncias insatisfeitas com o governo de Moscou, que se auto-explodem em estações, matando e ferindo mais de 100 pessoas são apresentadas ao mundo como personagens da política interna do país, no caso do separatismo checheno ou caucasiano. No entanto, é impossível que um fato dessa natureza não convide o telespectador a revisitar a idéia de ameaça que paira sobre o mundo desde o 11 de setembro.

Os auxiliares mais próximos do governo Bush filho afirmavam, assertivos, às vésperas da e após a invasão norte-americana do Iraque, que os Estados Unidos só voltariam para casa quando cada norte-americano pudesse dormir em paz e sem medo. Rememorando hoje tais declarações, diante de um episódio aqui e outro acolá de terrorismo, relacionado ou não à Al Qaeda e ao Islã, o fato é que qualquer telespectador de bom senso sabe que a volta do sono tranqüilo, sobretudo dos poderosos do mundo geopolítico, está longe de ser possível. O Iraque virou um detalhe passível de toda e qualquer desconstrução. O problema é o inominável e o desconhecido, a ameaça sem origem nem lugar.

GUERRA DE GENTE - Se antes, lá pelos idos dos anos 70, os telejornais e reportagens especiais davam indícios de que todo o mundo poderia ir pelos ares se um americano ou um russo apertasse um de seus botões bélicos da guerra fria, o panorama hoje parece muito mais assustador, uma vez que nem à prevenção se presta. Se antes, sentados sobre o trono do poder mundial, estavam líderes em tese ainda supostamente sensíveis a argumentos quanto à perspectiva de destruição do mundo, hoje os riscos são do tipo varejistas e encenados por gente que quer mais é ver o mar pegar fogo para deliciar-se com peixes cremados.

Se antes a guerra era entre os poderosos, hoje ela é protagonizada por insanos em nome do fundamentalismo, da performance, do terror sem limites e da repercussão de suas causas nos meios de comunicação. Se, a cada ameaça ou episódio terrorista, um país usar como contra-ataque a invasão do outro de onde vêm seus hipotéticos inimigos, o que há hoje escondido sob os mantos do multiculturalismo não é senão um ovo de serpente gestando e prestes a eclodir uma sucessão de guerras inacabáveis, não entre governos e estados, mas uma guerra indiscriminada de gentes.

SERPENTE - Nessa perspectiva de confronto e enfrentamento de gentes, pela via do terror, se há hoje um país com medo, tanto quanto os Estados Unidos, que já experimentaram o ódio vindo de nenhum lugar específico, é a França. Até agora se mantendo ao largo dos ataques terroristas, os franceses assistem, entre a tensão e a indiferença alienada, à fermentação de um caldeirão interno cuja pólvora é a extrema direita xenófoba e os migrantes mulçumanos insatisfeitos com a laicidade do estado, que não tolera, entre outras coisas, meninas e mulheres com burca ou xador nas escolas públicas. Para entender o tamanho do problema, o filme O dia da saiaé emblemático.

Se cada grande potência invadir o território alheio até que todos os seus cidadãos durmam tranqüilos e sem medo, conforme a máxima bushiana quando da invasão do Iraque, preparemo-nos todos para uma guerra insana, não a terceira, mas a do extermínio disseminado, onde ninguém admite nem tolera a existência do outro. Cenas como as das viúvas negras de Moscou, em nome do Cáucaso ou da Chechênia, e respostas como a do governo russo, que promete exterminar o que chama de vermes assim que arrancá-los das trevas, são, tão somente, o anúncio mais assustador da eclosão, não de um ovo de uma serpente, mas de um mundo inteiro sob o domínio delas.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto originalmente publicado no jornal A Tarde/SSA-BA, em 04 de abril de 2010.

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