quarta-feira, 28 de abril de 2010


Minorias e equidade

 
Tecnicamente, as minorias são compostas por aqueles que não representam a maioria em um sistema social ou político. Diversos e variados grupos sociais minoritários se definem a partir de sua identidade étnica, regional, sexual, política ou religiosa. Não apenas uma identidade positiva, compartilhada por seus membros, define a minoria: em geral, os interesses, valores ou necessidades desses grupos não coincidem com os correlatos para a maioria dos membros da sociedade, o que gera a busca de espaço e preservação de identidade, por parte desses grupos. Assim, alguns religiosos podem defender seu direito de guardar um determinado dia da semana ou de exercitar determinado ritual, mulheres requerem salários iguais aos homens em posições semelhantes e índios desejam a demarcação de suas terras, a despeito de não representar, isso, uma necessidade ou uma norma válida para a maioria dos membros da sociedade. Minorias, em geral, são pensadas como tendo uma permanência ou um longo tempo de vida na sociedade; seu estabelecimento ou a institucionalização dos meios de integração do grupo no conjunto da sociedade dão reconhecimento aos grupos minoritários.
Em geral, é a própria discriminação ou segregação que aglutina as minorias, dando-lhes identidade: marcando suas necessidades, um tipo de merecimento ou de tratamento diferenciado em relação à maioria, assim se definem. Dessa oposição surge a importância das minorias de se organizarem: apenas estabelecendo suas posições politicamente é que uma minoria deixa de ser excluída ou minimiza o impacto dos conflitos existentes entre seus interesses e os dominantes, em relação aos quais os grupos minoritários necessitam, em geral, de proteção legal que assegure que seus pontos de vista sejam considerados no cotidiano e representados nos parlamentos - esse último, tema sempre presente nas discussões sobre eleições ou reformas eleitorais.
Vale reforçar o sentido específico das minorias sociais, que não é estritamente aritmético: as mulheres podem ser maioria estatisticamente num país, mas constituírem uma minoria nesse sentido que apresentamos. Os palestinos, da mesma forma, são maioria numérica na Cisjordânia, mas constituem minoria religiosa diante do Estado de Israel, que reclama o território. Por outro lado, coincide aritmeticamente a minoria de imigrantes africanos na Europa continental, que enseja calorosas discussões sobre a percepção de políticas sociais do Estado, tais como auxílio-desemprego ou assistência à saúde, por exemplo, em concorrência com os cidadãos franceses ou italianos.
Organizadas, as minorias reivindicam justiça e contestam determinadas regras por serem delas excluídas e, na defesa dos seus interesses, movimentam a sociedade em torno de novos padrões de direitos e de sociabilidade. Os movimentos sociais são expressões de causas das minorias (homossexuais, de mulheres, de imigrantes, etc.), e dão um sentido particular às noções de cidadania e de democracia.
Isso nos leva à questão da equidade. E, para falarmos em equidade, precisamos relembrar uma doutrina social antiga, porém também atual, controversa e polêmica: a do “igualitarismo”, porque, em sentido mais simples, a equidade equivale à igualdade de direitos e privilégios para todos os cidadãos de um Estado, no que ela se confunde ainda com o princípio da “isonomia”.
No entanto, há interpretações conflitantes sobre o que significa a “igualdade”, na prática. Duas grandes correntes podem ser identificadas nesse sentido: a primeira afirma que o igualitarismo significa que todos os direitos políticos de todos os adultos devem ser os mesmos; a produção dessa igualdade estaria relacionada ao acesso à política, ao sufrágio e à igualdade perante a lei, sem a utilização de critérios étnicos, religiosos, sexuais ou sociais de quaisquer outros tipos. Em relação à proteção legal, “todos os homens são iguais perante a lei” é um bordão que está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada por Resolução da ONU em 1948, e que foi adaptado em vários textos constitucionais nacionais.Note que a garantia desse tipo de igualdade exige, no mínimo, um sistema legal que tenha regras processuais claras e que permita a oitiva dos réus no julgamento de direitos. De difícil alcance na prática, a igualdade formal que essa abordagem propõe significa pouco em contextos de desigualdades marcantes em aspectos tais como educação, renda, etc.
Em segundo lugar, temos a definição de igualitarismo em termos de “igualdade de oportunidades”, o que significa que, a despeito da situação socioeconômica na qual alguém nasce, ele terá as mesmas chances de qualquer outro de desenvolver suas habilidades e de adquirir qualificações que lhe serão úteis, especialmente, na conquista de um bom emprego. Isso requer, definitivamente, um sistema público de bem-estar social e educacional, que proveja aos menos favorecidos as condições básicas de competição com aqueles de background mais favorável. A mais básica das igualdades, a “de oportunidades”, se aproxima da justiça social, pois prega que o Estado deve prover oportunidades livres de vieses ou condicionantes relacionados a características individuais. Na prática, infelizmente, nenhum Estado contemporâneo pode afirmar ter alcançado esse objetivo, embora a maioria diga persegui-lo. A ideia de discriminação positiva, ou “ação afirmativa”, segundo a qual àqueles sabidamente com menores chances e prestígio no passado sejam dadas chances “extra” no presente, surgiu nos EUA como uma forma de compensação à injustiça social; tema polêmico, questiona-se se os efeitos dessas políticas são de fato compensatórios, se apenas amenizam um problema moral das sociedades, ou se, inversamente, criam uma nova forma de desigualdade ou preconceito.
O fato é que a noção de “equidade” se relaciona mais proximamente com essa ideia de justiça social do que com o conceito geral de igualdade, que é comumente apresentado como seu sinônimo.
O Direito moderno utiliza uma forma de aplicação das leis que consiste em aplicar a casos semelhantes uma orientação uniforme e construída pela história e pela jurisprudência. Equidade, para o Direito, é uma tentativa de adaptação das normas legais com vistas a potencializar a justiça das leis, conforme os casos concretos que se apresentam. Em outras palavras, a equidade corresponde ao tratamento desigual, perante o Estado, de indivíduos ou grupos ou situações desiguais.
VEJA ALGUNS DOS DIREITOS HUMANOS ELABORADOS NA RESOLUÇÃO DA ONU DE 1948 E ABSORVIDOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988:
Declaração Universal dos Direitos Humanos - Art. 1.º: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
CF/88 - Art. 5.º: Todos são iguais perante a lei, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
Declaração Universal dos Direitos Humanos - Art. 2.º: Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
CF/88 - Art. 5.º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
- homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
- é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
(…)
Declaração Universal dos Direitos Humanos - Art. 11: Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
CF/88 - Art. 5.º: XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu
Declaração Universal dos Direitos Humanos - Art. 13: Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. Todo homem tem direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.
CF/88 - Art. 5.º: XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
Art. 14: Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e gozar de asilo em outros países. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
Declaração Universal dos Direitos Humanos - Art. 15: Todo homem tem direito a uma nacionalidade. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.
CF/88 - Art. 12: São brasileiros:
- natos: (…)
II - naturalizados: (…)
§ 2.º A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição.

Zoom Salve Geral

Trailer Salve Geral - OFICIAL

Fantástico - A polêmica Usina de Belo Monte - 25/04/10

domingo, 4 de abril de 2010


TELEANÁLISE


MALU FONTES


O OVO DA SERPENTE

O atentado terrorista mais devastador da história caminha para completar sua primeira década. Após o 11 de setembro de 2001, quando as emissoras de televisão de todo o mundo repetiram ininterruptamente as imagens surreais das torres gêmeas explodindo em chamas, fumaça e poeira no ar em Nova Iorque por aviões cheios de gente e combustível, arremessados por terroristas contra um dos símbolos mais caros do capitalismo, a geopolítica mundial nunca mais parou de experimentar estertores. A conseqüência política mais visível foi a invasão do Iraque. As conseqüências subliminares até hoje são esquadrinhadas e já são em quantidade suficiente para preencher desde as paranóias mais esdrúxulas ao medo mais concreto de todo o mundo, sobretudo entre os países mais poderosos do ocidente.

Depois do 11 de setembro, outros ataques de menores proporções, mas igualmente cruéis e violentos elegeram o metrô de Londres, o sistema ferroviário de Madri e hotéis no Egito e no Marrocos. Nesta semana as imagens mais importantes, em escala global, na TV mundial mostravam pessoas mortas, sangrando ou sendo socorridas em duas estações de metrô em Moscou, o segundo do mundo em movimentação diária de pessoas, ficando atrás apenas do metrô de Tóquio, no Japão.

VIÚVAS – É fato que as viúvas negras, como são chamadas as mulheres bombas russas ligadas a guerrilheiros separatistas das províncias insatisfeitas com o governo de Moscou, que se auto-explodem em estações, matando e ferindo mais de 100 pessoas são apresentadas ao mundo como personagens da política interna do país, no caso do separatismo checheno ou caucasiano. No entanto, é impossível que um fato dessa natureza não convide o telespectador a revisitar a idéia de ameaça que paira sobre o mundo desde o 11 de setembro.

Os auxiliares mais próximos do governo Bush filho afirmavam, assertivos, às vésperas da e após a invasão norte-americana do Iraque, que os Estados Unidos só voltariam para casa quando cada norte-americano pudesse dormir em paz e sem medo. Rememorando hoje tais declarações, diante de um episódio aqui e outro acolá de terrorismo, relacionado ou não à Al Qaeda e ao Islã, o fato é que qualquer telespectador de bom senso sabe que a volta do sono tranqüilo, sobretudo dos poderosos do mundo geopolítico, está longe de ser possível. O Iraque virou um detalhe passível de toda e qualquer desconstrução. O problema é o inominável e o desconhecido, a ameaça sem origem nem lugar.

GUERRA DE GENTE - Se antes, lá pelos idos dos anos 70, os telejornais e reportagens especiais davam indícios de que todo o mundo poderia ir pelos ares se um americano ou um russo apertasse um de seus botões bélicos da guerra fria, o panorama hoje parece muito mais assustador, uma vez que nem à prevenção se presta. Se antes, sentados sobre o trono do poder mundial, estavam líderes em tese ainda supostamente sensíveis a argumentos quanto à perspectiva de destruição do mundo, hoje os riscos são do tipo varejistas e encenados por gente que quer mais é ver o mar pegar fogo para deliciar-se com peixes cremados.

Se antes a guerra era entre os poderosos, hoje ela é protagonizada por insanos em nome do fundamentalismo, da performance, do terror sem limites e da repercussão de suas causas nos meios de comunicação. Se, a cada ameaça ou episódio terrorista, um país usar como contra-ataque a invasão do outro de onde vêm seus hipotéticos inimigos, o que há hoje escondido sob os mantos do multiculturalismo não é senão um ovo de serpente gestando e prestes a eclodir uma sucessão de guerras inacabáveis, não entre governos e estados, mas uma guerra indiscriminada de gentes.

SERPENTE - Nessa perspectiva de confronto e enfrentamento de gentes, pela via do terror, se há hoje um país com medo, tanto quanto os Estados Unidos, que já experimentaram o ódio vindo de nenhum lugar específico, é a França. Até agora se mantendo ao largo dos ataques terroristas, os franceses assistem, entre a tensão e a indiferença alienada, à fermentação de um caldeirão interno cuja pólvora é a extrema direita xenófoba e os migrantes mulçumanos insatisfeitos com a laicidade do estado, que não tolera, entre outras coisas, meninas e mulheres com burca ou xador nas escolas públicas. Para entender o tamanho do problema, o filme O dia da saiaé emblemático.

Se cada grande potência invadir o território alheio até que todos os seus cidadãos durmam tranqüilos e sem medo, conforme a máxima bushiana quando da invasão do Iraque, preparemo-nos todos para uma guerra insana, não a terceira, mas a do extermínio disseminado, onde ninguém admite nem tolera a existência do outro. Cenas como as das viúvas negras de Moscou, em nome do Cáucaso ou da Chechênia, e respostas como a do governo russo, que promete exterminar o que chama de vermes assim que arrancá-los das trevas, são, tão somente, o anúncio mais assustador da eclosão, não de um ovo de uma serpente, mas de um mundo inteiro sob o domínio delas.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto originalmente publicado no jornal A Tarde/SSA-BA, em 04 de abril de 2010.